Por Caio Simi
No último final de semana, tivemos em São Paulo a nona edição da Virada Cultural SP. Penso que a proposta do programa condiz com o que sempre idealizei para uma cidade; a população ocupando espaços públicos, nossos impostos revertidos em eventos culturais abertos e para todos, e pessoas das mais diversas regiões, cabeças, histórias e grana dividindo o mesmo espaço e apreciando o mesmo espetáculo. Embora esta tenha sido a experiência de muitos, dirijo meu post a realidade de outros que, de certa forma, se desiludiram por presenciarem cenas já famosas de arrastões e violência, que desta vez resultaram em 5 baleados, 2 esfaqueados, 1 morto a tiros e 1 morto por overdose de cocaína.
Lembro que antes de começar a pensar políticas públicas, acreditava que o grande passo contra a violência urbana era levar a população às ruas; aqui abro parênteses a uma breve recordação que me levou àquela percepção. Na Av. Fuad Lutfala, próximo ao Morro Grande, temos uma praça que eu e meu colega chamamos de “praça do movimento”, um lugar de grama alta, esquecido pelo Estado, que sempre me atraiu pela aglomeração de skatistas em um half-pipe construído em um de seus cantos. O apelido da praça origina-se porque, em uma noite de praça vazia, enquanto batia um papo e gastava uns neurônios com um colega, eu fui abordado por um rapaz que surgiu do meio do escuro e me perguntou se eu era de lá e se o carro que estava parado ali, próximo a nós, era realmente nosso. Ao responder que sim, o rapaz se desculpou e explicou que ali “rolava um movimento”, “que estávamos ligados”, mas que, como éramos de lá, poderíamos ficar sussa. O susto me fez ter uma breve visão minimalista de que se a praça estivesse cheia, com iluminação eficiente, policiamento ostensivo e em uma melhor localização, aquilo não ocorreria. Não demorou muito para que eu caísse na real e me perguntasse: “mas e o movimento? para onde ele iria?”, se o vigiássemos ali, para a segurança dos que não são dali.
O parênteses vale porque vejo muita gente cometendo a mesma redução de análise ao opinar sobre a violência presenciada na Virada Cultural paulista. O que vi na abordagem da grande mídia foi um show de sensacionalismo cego e sem objetividade, que estendeu as críticas à proposta da Virada Cultural, à ineficiência da polícia e ao “caos que estamos vivendo”. Nosso governador Geraldo Alkmim chegou a dizer que ‘é preciso reavaliar os lugares onde ocorrem os shows e a iluminação nos principais pólos da virada’, e pra não dizer que eu só falei da planta, nosso prefeito Fernando Haddad explicou o aumento da violência desta edição em relação às outras pelas “pessoas que vieram à Virada Cultural com um comportamento diferente das anteriores”. O que digo é que a Virada Cultura mais uma vez escancarou no centro de São Paulo o que ignoradamente ocorre durante todo o resto do ano na cidade; o conflito de uma sociedade totalmente heterogênea e desigual, que se distancia motivada por uma educação oposicionista de ambos os lados, e se vê cada vez mais desintegrada pelo medo e pelo discurso.
Compactando a opinião ao decoro da formatação de um post, inicio minha crítica ao que transformamos no ideal comum de vitória do cidadão paulista; um padrão de consumo sem regras, que importamos desde o P.I.M.P. americano ao iate em Mônaco na Fórmula 1. Se o desenvolvimento do capitalismo em Webber deu-se pela ética protestante da re-conceituação da acumulação do capital e da dignificação do trabalho, hoje, nós o alimentamos pelo nosso próprio ego, e o fortalecemos pela exportação do ideal ilusório de que “ganhar dinheiro é vencer na vida”. Se para muita gente bem-criada, que fala em “meritocracia” com curso de inglês e boa educação, a competitividade já é motivo para passar a perna no primeiro cara que disputar consigo uma vaga de emprego, o que dizer a um moleque de família desestruturada que cresceu na periferia, aprendeu que o sucesso é um carro, celular e tênis que seu dinheiro não poderá comprar, e que vê sua mãe se arrebentar de trabalhar em troca de alguns trocados que mal paga o aluguel do seu barraco? Hoje, a linha que define se o moleque estudará ou fará arrastões, quando não o tráfico, quando não os três, para encurtar o acesso a um tênis de R$ 900,00, é muito tênue; ainda mais se o mesmo moleque pensar que aquele tênis que impressionará sua galera não fará falta a um “playboy” que tem um celular de R$ 2.500,00. Se esperamos outra cabeça deste moleque, sejamos francos, é porque nesta idade tivemos outra educação de nossos pais, avós ou colégios, pois a televisão e internet pouco nos ensinaram sobre respeito e dignidade. Quanto ao “playboy”, aproveito o termo pejorativo para engatar outra crítica. O “playboy”, para o pobre, e o “favelado”, para o rico, convivem de forma extremamente distante em São Paulo, tanto geograficamente quanto ideologicamente, e quando raro ocorre algum evento que reúne certa diversidade social na cidade, suas realidades extremamente distantes fazem com que eles pouco se entendam. Por mais que valorizemos movimentos como o Hip Hop, que ainda criem pontes que encurtem esse enorme vão, a verdade é que enquanto o brasileiro pobre não receber uma educação semelhante ao da verdadeira classe média; conviver com a oportunidade de freqüentar os mesmos colégios e faculdades, sonhar com as mesmas experiências, ter acesso aos mesmos espaços públicos e privados; além de, finalmente, ser tratado como todas as outras classes; este jamais será e se enxergará igual.
Em São Paulo, falamos continuamente em pluralismo e diversidade; mas, cá entre nós, nos centros residenciais de maior acumulação de renda, da Vila Mariana à Vila Madalena, de Moema a Perdizes, convivemos majoritariamente com semelhantes, e não frequentamos os mesmos espaços dos que não puderam estar ali. Concordo que daí à violência há uma grande escala, mas o início é a fronteira larga e imperceptível que ambas as classes criaram contra as formações que delas divergem, e mesmo que algumas vezes a mascaramos com algumas atitudes elucidas e paliativas, sejamos francos, a cara do pobre não convive com a cara do rico nessa cidade, e isto é explícito até no português que falamos.
Abro aqui outra crítica, desta vez à maneira com que tratamos as drogas; temos que reconhecer que se a maconha é a droga mais injustiçada pelo Estado, a cocaína é a droga inversamente mais injustiçada pelo ativista político. Presencio nossa geração levantando diversos debates sobre o enfraquecimento do tráfico pela legalização da maconha e o papel do Estado ao usuário de crack, mas a cocaína é praticamente ignorada por todos que vivem longe de seus reais efeitos sociais. Um parêntese, aos que dizem que a cocaína é droga de rico, respondo, na boa, que esqueçam Paris e cruzem o Rio Tietê. No Brasil e principalmente em São Paulo, a cocaína é forte na periferia, e é especialmente perigosa na vulnerabilidade da nossa adolescência; a cocaína dá a coragem que todo o moleque quer ter, e quando a substituição pelo álcool já não tem mais graça, se desencadeia num vício que só é socialmente e politicamente discutido quando acaba em homicídio ou overdose em pleno viaduto Santa Ifigênia. Que a morte ocorrida na Virada Cultural de SP sirva para que discutamos a cocaína com a mesma eficácia com que discutimos o crack, pois hoje terceirizamos esta responsabilidade a atores sociais paralelos, como ongs e letras de rap.
Já o último ponto que abro é sobre o preconceito e a discriminação social e racial, que por vezes ouvimos não existir mais no Brasil. Concordo que talvez não exista no discurso padrão, mas aplaudir um discurso é mais fácil do que enxergar a realidade, e a realidade é que os espaços da velha classe média, da rede de café americana à faculdade privada, estão carentes do que os economistas chamam de “nova classe média”. Pelo lado racial, a proporção de negros e pardos para brancos no Brasil é praticamente a mesma, mas sua segregação começa quando o perfil dos alunos de faculdades privadas no país é de uma elite predominantemente branca. A diferença é que aqui não separamos nossos bairros por grades como na Cidade do Cabo, mas possuímos a cara do ladrão exposta em nossas mentes, e enjaulamos o funk, o pagode, o boné de aba reta, o moletom colorido e algumas gírias. Para darmos valor à velha cultura popular brasileira, fizemos com que a história o provasse por si próprio. Pobre do africano e boliviano que lutará por trabalho em São Paulo sem a cultura do carnaval a seu favor.
Aos diversos amigos de fora do estado de São Paulo que me perguntaram sobre o que está acontecendo com nossa capital, não encontrei análise antes de me perguntar sobre o que aconteceu com nós mesmos. Discutir a mudança pelo papel do Estado, da polícia, do tráfico e da lei são essenciais, mas como fazê-los com responsabilidade se não começamos a mudar nem a nós mesmos? A integração social vai além do show de rap na augusta e dos artesanatos de reggae na Av. Paulista. Integração de verdade começa com olho no olho, abrir a cabeça para além do discurso, ouvir o que todas as camadas da população têm pra falar antes de discutir qualquer lacuna social ou estatal, e encará-las como demandas efetivas de moradores que compartilham e merecem a mesma cidade que nós. Construir espaços como o que sonhamos para a Virada Cultural requer a estruturação de uma sociedade harmônica, e isso não existirá enquanto nós mesmos não praticarmos uma convivência menos desfragmentada e oposicionista.
Sobre a violência em São Paulo, penso que o paulista precisa primeiro refletir e absorver melhor a realidade da cidade e sua participação neste cenário; caso contrário, seguiremos pegando carona em discussões de caráteres mais políticos do que objetivos. A uma sociedade que demandou redução da maioridade penal antes mesmo de discutir o verdadeiro papel da Fundação Casa e a quem ela se aplica atualmente, a ilusão já não me surpreende mais.